Senhoras, senhores:
a carta abaixo é fruto do esforço de alguns ativistas reunidos em
torno do tema das drogas, e busca manifestar apoio ás recentes
transformações pelas quais passou a SENAD (Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas), que deixou de ser parte do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República (a antiga “Casa
Militar”), e passou à estrutura do Ministério da Justiça. Outro símbolo
importante: a SENAD deixa de ser dirigida por um General, e passa a ser
coordenada por Pedro Abramovay, profissional de larga experiência no
campo dos Direitos Humanos.
Estamos solicitando sua assinatura.
Atenciosamente
PONDERAÇÕES SOBRE POLÍTICAS DE DROGAS NO BRASIL
Carta aberta à sociedade brasileira
Há muito ainda a fazer até que a questão das drogas seja encarada
como problema de saúde pública e não de justiça criminal, mas podemos
estar iniciando uma caminhada que poderá desaguar nessa transformação.
Julita Lemgruber
O tema das drogas é articulador de diferentes olhares e formas de
pensar. Este documento expressa a visão de um grupo formado por
estudantes, professores e pesquisadores de diferentes campos do
conhecimento; trabalhadores de Saúde, Assistência Social, Educação;
operadores do Direito; gestores públicos e ativistas unidos pelo
interesse no tema das políticas públicas sobre drogas, a partir de
compromissos claros com os Direitos Humanos e a promoção da cidadania
ativa para pessoas que usam drogas. Além disto, defendemos os princípios
e diretrizes do Sistema Único de Saúde, da Reforma Psiquiátrica e do
Sistema Único da Assistência Social. É a partir destes múltiplos lugares
e, principalmente dos compromissos que nos unem, que gostaríamos de nos
manifestar sobre as recentes mudanças na Secretaria Nacional de
Políticas Sobre Drogas (SENAD).
Historicamente, as políticas públicas sobre drogas têm se constituído
em importantes dispositivos de criminalização e medicalização
(criminoso-prisão na segurança, dependente-internação na saúde), cujos
efeitos têm recaído sobre distintos grupos sociais vulneráveis e
estigmatizados, frequentemente associados a qualquer uma das etapas dos
processos de produção, circulação, comércio e consumo de substâncias
qualificadas como ilícitas. As diretrizes que embasaram as políticas de
drogas no país, desde a Lei Nº 6368/76, até a Lei Nº 11.343/06, foram
demonstrativas de um tensionamento entre duas arenas distintas: de um
lado, a preocupação diante de um problema visto como pertinente à “Saúde
Pública”; de outro, a compreensão de que este problema social, tendo
como única origem comportamentos desviantes e criminosos, deveria ser de
responsabilidade única dos agentes executores das políticas de
Segurança Pública. Deste modo, embora a proibição às drogas tenha até
hoje como justificativa a proteção à Saúde Pública como bem comum, na
prática as ações educativas e preventivas com relação às pessoas que
usam drogas sofreram pressões alheias ao campo político-reflexivo da
Saúde.
Nascida sob o impacto da adesão brasileira ao documento da UNGASS 98,
na égide da “war on drugs”, a SENAD constituiu o tema das drogas como
assunto de Segurança Nacional, e organizou-se a partir de uma estrutura
militar. Nos últimos anos, algumas mudanças começaram a ocorrer. A
começar pelo nome: a secretaria deixou de ser “Antidrogas”, tornando-se
um secretaria “de Políticas sobre Drogas”. Além disto, a SENAD teve
papel importante na condução do processo de reformulação do Plano
Nacional sobre Drogas, no incentivo ao fortalecimento e qualificação dos
Conselhos Estaduais e Municipais sobre Drogas; no âmbito da produção de
conhecimento, a SENAD apoiou e organizou diretamente a realização de
seminários com experiências internacionais, e teve papel fundamental
para a criação da Rede de Pesquisa sobre Drogas. Não obstante, subsistia
esta estrutura militar, a submissão estrutural ao Gabinete de Segurança
Institucional, antiga Casa Militar da Presidência da República.
Neste sentido, a mudança da SENAD para junto do Ministério da Justiça
é coerente com a história recente desta instituição. O contrário disto –
sua manutenção em uma estrutura militar – seria uma explícita profissão
de fé na “guerra às drogas”; já o seu deslocamento para a Casa Civil
como uma das primeiras medidas do governo Dilma, constitui-se um
indicativo de novos olhares para os múltiplos temas relacionados às
drogas.
Diante do pronunciamento de Alexandre Padilha, podemos projetar parte
desta nova mirada. Em seu discurso de posse, o novo ministro da saúde,
infectologista, falou de seu aprendizado político em meio à construção
da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids, junto às pessoas mais
diretamente envolvidas o tema da Aids em suas vidas, em seus cotidianos.
Pois afirmamos: assim como o protagonismo das pessoas vivendo com
HIV/Aids foi essencial para tornar a política brasileira de controle da
Aids um exemplo exitoso, também as políticas de drogas devem ser
construídas com a participação de pessoas que usam drogas, ampliando
olhares e permitindo avançar. Em uma perspectiva coerente com tais
ideias, o novo ministro da saúde manifestou-se especificamente sobre o
problema do crack com as seguintes palavras:
Os serviços de atenção não podem fazer com que as pessoas percam sua
autonomia, percam o contato com a família, percam o contato com o espaço
social onde se constrói sua identidade. Porque nós não queremos pessoas
permanentemente internadas, nós queremos evitar esse mal e fazer com
que as pessoas sejam ativas e protagonistas na vida e que continuem a
viver.
Acreditamos que só é possível enfrentar a questão das drogas, naquilo
que afeta a sociedade como um problema social, com o incentivo e a
garantia de que as pessoas que usam drogas sejam protagonistas das
políticas de drogas. Para além de um posicionamento ético, trata-se de
projetarmos modos de vida em conjunto com sujeitos que hoje, diante da
complexidade do tema, são ora responsabilizados e criminalizados, ora
defrontados com políticas públicas pautadas na tutela, na internação,
nos dispositivos de manejo, nas contenções químicas e físicas.
Os esforços no enfrentamento aos usos problemáticos de crack, ao
ressaltarem sua parcela “combativa” diante de contextos considerados
perigosos e, principalmente, ao ressaltarem os efeitos das drogas sobre o
organismo, correm o risco de não olhar para as potencialidades da
promoção de sujeitos de cuidado, autores de seus próprios projetos de
vida. Devemos observar mais de perto experiências de descriminalização
como a de Portugal, que completou 9 anos e é tido como exemplo mundial
em redução do uso de drogas entre jovens, nas taxas de criminalidade e
nas mortes por overdose, e pelo aumento no acesso a tratamento público
de qualidade, no investimento em pesquisa e no acesso à informação. Em
tais contextos, torna-se possível aprender o que as pessoas que usam
drogas têm a nos ensinar. Torna-se possível a construção de uma política
com a participação efetiva das pessoas que usam drogas, incluindo aí o
direito de livre organização e a participação destas pessoas nos
conselhos sobre drogas nos âmbitos municipal, estadual e federal
Avaliamos positivamente a recente transferência da SENAD para o
Ministério da Justiça, e a indicação de Pedro Abramovay para a
coordenação geral do órgão, ele que no governo anterior teve
participação importante, sendo inclusive o mais jovem Ministro da
Justiça brasileiro, em substituição a Tarso Genro. Ao deslocar para a
SENAD um quadro político com experiência tão sólida, com forte
compromisso com os Direitos Humanos, o governo brasileiro oferece um
demonstração inequívoca de que é possível sonhar com uma política de
drogas mais humana, democrática e cidadã.
Acreditamos que um dos principais desafios desta nova gestão e nova
estrutura institucional da SENAD será, partindo do âmbito do Ministério
da Justiça, consolidar as Políticas Públicas sobre Drogas a partir de
perspectivas essencialmente intersetoriais. Com relação a isso, também
depositamos esperanças de maior abertura para o diálogo entre governo e
sociedade civil organizada, e também entre as estruturas de governo
responsáveis por articular políticas tão complexas quanto os problemas
que buscamos enfrentar.
ASSINATURAS
1. Alda Roberta Campos: Psicóloga,
coordenadora clínica do Instituto RAID, especialista em psicologia da
família, redutora de danos, técnica em saúde mental da gerência de
Redução de Danos (Recife, PE), supervisora do Consultório de Rua
(Recife, PE), supervisora em CAPSad (Cabo de Santo Agostinho, PE)
2. Bruno Ramos Gomes: Psicólogo, mestrando
em Saúde Pública , presidente do Centro de Convivência É de Lei,
representante do CRP-SP no COMUDA (Conselho Municipal sobre Drogas)
(São Paulo, SP)
3. Cristina Rauter: Psicóloga, doutora em
Psicologia Clínica , pesquisadora sobre o tema da criminalidade e da
violência, professora do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense (Niterói, RJ)
4. Dênis Roberto da Silva Petuco: Cientista social, mestrando em Educação, redutor de danos no CAPSad Primavera (Cabedelo, PB)
5. Edézia Maria de Almeida Gomes:
Psicóloga, especialista em dependência química, supervisora clínica
institucional de CAPS pelo Ministério de Saúde, trabalhadora do CAPSad
Jovem Cidadão (João Pessoa, PB)
6. Efigênia Ferreira e Ferreira: Dentista, doutora em Epidemiologia, professora da Faculdade de Odontologia da UFMG (Belo Horizonte, MG)
7. Elisangela Melo Reghelin: Advogada,
delegada de polícia, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), professora da
UNISINOS (São Leopoldo, RS)
8. Fabiana Elias de Mesquita: Jornalista,
arte-educadora, ativista em Direitos Humanos e empoderamento juvenil,
doutoranda em Antropologia pelo Asian Social Institute (Manila,
Malásia)
9. Flávia Fernando Lima Silva: Médica
psiquiatra, analista institucional/ esquizodramatista em formação,
professora da UFCG (Campina Grande, PB), diretora geral do Complexo
Psiquiátrico Juliano Moreira (João Pessoa, PB)
10. Flávio Campos Neto: Redutor de danos,
vice-presidente nacional da Juventude Socialista Brasileira, conselheiro
estadual sobre drogas (Recife, PE)
11. Francisco do Nascimento Couto: Psicólogo, colaborador da Comissão de Saúde do Conselho Regional de Psicologia (Recife, PE)
12. Giovanni Gurgel Aciole: Médico, doutor em Saúde Coletiva , professor do curso de Medicina da UFSCar (São Carlos, SP)
13. Guilene Salerno: Psicóloga, coordenadora
pedagógica da Escola Municipal Porto Alegre para jovens em situação de
rua e drogadição (Porto Alegre, RS)
14. João Pontes: Cientista social, gestor do projeto Mulheres da Paz, ligado ao PRONASCI (Canoas, RS)
15. Jorgina Sales: Enfermeira, especialista em
Enfermagem em Urgência e Emergência, professora na ESENFAR/UFAL (Escola
de Enfermagem e Farmácia da Universidade Federal de Alagoas),
coordenadora do centro regional de referência para formação permanente
de profissionais que atuam nas redes de atenção integral à saúde e de
assistência social com usuários de crack e outras drogas e seus
familiares (Maceió, AL)
16. Juliana Sampaio: Psicóloga, doutora em
Saúde Pública pelo CPqAM/FIOCRUZ, coordenadora do PET-Saúde da
Família, professora da UFCG (Campina Grande, PB)
17. Leonardo Lima Günther – Advogado, membro da
RENAP (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares), pesquisador do
Grupo de Estudos em Ciências Criminais da UFRGS, membro do rizoma
Princípio Ativo (Porto Alegre, RS)
18. Loiva Maria De Boni Santos: Psicóloga, mestranda em Psicologia Social , assessora em Saúde Mental , álcool e drogas, professora na FSG (Faculdade da Serra Gaúcha), conselheira municipal de entorpecentes (Caxias do Sul, RS)
19. Luciana Boiteux: Professora adjunta de
Direito Penal da UFRJ, coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de
Drogas e Direitos Humanos da FND/UFRJ, Pesquisadora do NEIP, membro da
Comissão de Política de Drogas do IBCCrim e da OAB/RJ (Rio de Janeiro,
RJ)
20. Maria do Carmo Ledesma Al Alam: Psicóloga, coordenadora do Programa de Redução de Danos e Consultório de Rua (Pelotas, RS)
21. Pablo Ornelas Rosa: Antropólogo, redutor de danos, educador social (São Paulo, SP)
22. Paulo Eduardo Orlandi Mattos: Cientista, doutorando em Biologia
Molecular, pesquisador do CEBRID-UNIFESP (São Paulo, SP)
23. Rafael Mendonça Dias: Psicólogo, doutorando em Psicologia, redutor de danos (Rio de Janeiro, RJ)
24. Renata Almeida: Psicóloga e fonoaudióloga,
mestre em psicologia clínica, membro do GEAD (Grupo de Estudos em
Álcool e outras Drogas) e do CPD (Centro de Prevenção às Dependências);
gerente do CAPSad Campo Verde (Camaragibe, PE)
25. Rosa Mayer: Psicóloga, especialista em
Dependência Química , redutora de danos, funcionária da Secretaria
Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS)
26. Samuel Delane Lima Junior: Psicólogo, técnico
de prevenção do Programa DST/Aids, Coordenador da Escola de Redutores,
Redutor do Consultório de Rua (Maceió, AL)
27. Semiramis Maria Amorim Vedovatto: Psicóloga,
consultora da Bem Viver Desenvolvimento de Projetos Sociais, redutora
de danos, conselheira municipal de saúde (Lapa,PR)
28. Sérgio Pinho dos Santos:
Profissional autônomo, redutor de danos, vice-presidente da AMEA
(Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares do Sistema
de Saúde Mental do Estado da Bahia) (Salvador, BA)
29. Thiago Alexandre Moraes: Conselheiro nacional de juventude, membro do coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão) (São Paulo, SP)
30. Giovanni Gurgel Aciole, médico, doutor em saúde coletiva. Professor do curso de medicina da Univ. Fed. de São Carlos (UFSCAR).